A relação entre a Covid-19 e o Fígado

Flair José Carrilho, Hepatologia

Publicado em 25/06/2021 - Atualizado em 24/04/2024



Durante esse um ano e meio de pandemia vimos que a Covid-19 pode se apresentar de várias maneiras, desde um estado assintomático até quadros de insuficiência respiratória aguda grave com comprometimento de vários órgãos, incluído o fígado. E, quando dissemos isso, é importante ter em mente que estamos falando de um órgão de primeira grandeza, tido como o principal laboratório do corpo humano por realizar centenas de funções e processos vitais, como gerar energia para todo o organismo, eliminar toxinas, metabolizar medicamentos e hormônios, destruir células vermelhas do sangue e micróbios que eventualmente driblaram as células de defesa do intestino. Isso justifica porque precisamos observar com atenção os impactos da Covid-19 no fígado, como o fato de que manifestações hepáticas foram identificadas em 14% a 53% dos pacientes infectados pelo coronavírus, principalmente naqueles que tiveram casos mais graves da infecção; e que entre os que já possuíam uma doença hepática crônica, 2% a 11% tiveram o agravamento de sua condição ao serem contaminadas pelo coronavírus.

Enquanto a maioria das alterações enzimáticas do fígado se normaliza à medida que a pessoa se recupera da Covid-19, anomalias podem persistir e piorar o estado de alguns pacientes, aumentando o risco de complicações graves e até de morte. Várias evidências sugerem que isso pode acontecer com quem tem doenças crônicas do fígado, como é o caso dos que possuem cirrose hepática, carcinoma hepatocelular, doença hepática gordurosa não-alcoólica, hepatite autoimune e hepatite viral B, assim como nos transplantados de fígado sob imunossupressão.

Para explicar as lesões hepáticas relacionadas a pacientes com Covid-19 há atualmente quatro mecanismos conhecidos:

1) Ação do vírus por meio das células do epitélio biliar, já que as células do fígado não possuem a proteína ACE-2 que a Covid-19 usa como porta de entrada;
2) Efeito tóxico direto das células T, do sistema imune, como resposta inflamatória ao coronavírus;
3) Toxicidade hepática causada por um ou mais dentre os numerosos medicamentos que pacientes com Covid-19 recebem;
4) Alterações no sistema circulatório e diminuição do aporte de oxigênio nos tecidos com repercussões em todo o organismo e no fígado nos casos graves.
 
Com o passar dos meses da pandemia, diversos pacientes em recuperação da Covid-19 também têm apresentado amarelamento de olhos e pele, coceira e alterações bioquímicas que indicam lesão de fígado e de vias biliares. Em alguns casos mais graves, principalmente entre os que tiveram formas graves de Covid-19, observamos retenção de bile conhecida como colestase, por vezes até mostrando padrão de colangite esclerosante secundária, uma doença que compromete o fígado devido a inflamação e fibrose causadas pelo estreitamento dos canais por onde passa a bile, uma substância fundamental no processo digestivo. Essa lesão biliar é irreversível e possivelmente acontece devido a agressão direta pelo vírus, por resposta imunomediada (quando o sistema imune ataca células saudáveis do próprio corpo), toxicidade relacionada a medicação utilizada ou por lesões das células biliares associadas à diminuição do aporte de oxigênio nos tecidos. Casos com essa evolução apresentam um pior prognóstico e alguns deles têm mostrado piora progressiva da função hepática, chegando a requerer transplante hepático.
 
Resumindo, nossa experiência até agora é que, mesmo na fase aguda da Covid-19, o fígado não parece ser um alvo direto do coronavírus. Porém, o órgão pode ser acometido secundariamente pelo vírus ou pelos numerosos procedimentos aos quais especialmente os casos sistêmicos mais graves precisam ser submetidos. De outra parte, uma especial atenção deve ser dada aos pacientes em fase de recuperação da doença, sendo essencial o monitoramento detalhado daqueles que apresentem evidências clínicas ou bioquímicas sugestivas de disfunção do fígado. Essa vigilância deve ser ainda mais cuidadosa nos infectados pelo coronavírus que já sejam portadores de doenças crônicas e do fígado.

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